sábado, 4 de abril de 2015

ENSAIO SOBRE A VISÃO - Parte II





“A cegueira também é isto: viver num mundo onde se tenha acabado toda a esperança”

José Saramago



Eu respeito o ladrão – até porque já fui um deles; sim! confesso que já tive de roubar alimentos para saciar minha fome -, convivi com assassinos, tolero corruptos, malandros, preguiçosos, e outras gentes do mesmo gênero. Mas nunca perdoaria um INGRATO! Devo a vida a alguns médicos e vou rezar por eles até a hora da minha morte. Deixo de relacioná-los aqui porque este texto tem uma finalidade específica: agradecer de público ao homem que me fez voltar a enxergar o mundo.

Até Agosto / Setembro de 2014 eu era incapaz de guiar automóveis, ler, reconhecer pessoas a uma certa distância e identificar objetos pequenos. O olho esquerdo estava totalmente comprometido (cego). Mesmo assim ainda consegui realizar uma viagem internacional. Sozinho. No princípio de Outubro, meu cardiologista me mostrou o resultado de alguns exames e eu não fui capaz de ler. “Não consegue ler?” ”Não. Catarata”, adiantei. “Por que não manda operar?” ”Porque meu próprio oculista não se operaria; é um cara ou coroa, segundo ele me disse...” “Tome, procure este oftalmologista”, disse o meu médico do coração, entregando-me um papel. Fui!

“É, cara... quer dizer, cara mesmo, mas pode ser coroa... O nosso colega tem toda razão. Sua córnea não possui células suficientes nem para fabricar meia dúzia de amebas... quer dizer, amebas talvez sim, porque possuem um só núcleo. Já um mixomiceto, é duvidoso. Mas há um recurso: transplante de córnea. E existe uma doutora enfermeira encarregada de selecionar a minha fila. Mas escute, nem sempre o transplante é indispensável, mesmo em circunstâncias como a sua. Restitutio ad integrum (cicatrização total da córnea), depende muito da agilidade com que a cirurgia é executada e de traumatismos mínimos em seus tecidos. Recomendo, porém, que esteja preparado: existem 90% de chances de que você venha a conduzir – para o resto de sua vida – a córnea de um morto nos seus olhos”[1]. E, com muita paciência e boa vontade, mostrou-me demoradamente, no computador, detalhes técnicos das duas operações: a da catarata em si, e a do transplante. Havia casos em que as duas, em um único olho, poderiam ser executadas simultaneamente. Mas dada a delicadeza da minha condição, era mais prudente realizar cada uma delas em tempos diferentes. In other words: eu seria submetido a nada menos de quatro operações, com intervalos médios de trinta dias entre uma e outra.

A cirurgia da catarata, hoje em dia, consiste basicamente em remover o cristalino opacificado através de sua emulsificação (liquefação), seguida de aspiração e implante de uma lente artificial em seu lugar. Num passado ainda recente, tais lentes não existiam. O cristalino era substituído por um par de óculos de lentes grosseiras (tipo fundo de garrafa), que davam ao rosto do doente um aspecto deselegante e causavam a impressão, aos circunstantes, de que ele estivesse ainda mais cego do que antes. Como disse, por conta de sua aparente simplicidade, considero a operação de catarata a “cesárea” do oculista.

Sucede que executar, de qualquer maneira, a cirurgia de catarata é uma coisa. Agora, fazê-lo com rapidez, agilidade, segurança, com mínimo ou nenhum sangramento, sem trauma importante para a córnea e com a lente artificial corretamente implantada, enfim, com perícia extrema, é outra história bem diferente... Já o transplante é muito mais complicado... e demorado.


[1] Em verdade, a oftalmologia – tal como a Medicina como um todo – progrediu tanto que atualmente, na maioria dos casos, em vez de empregar o transplante de toda a córnea, o cirurgião destaca e usa apenas a camada interna das células de revestimento – o endotélio. Este detalhe traz inúmeras vantagens dentre as quais a mais importante é a ausência quase absoluta da probabilidade de rejeição.

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