sábado, 4 de abril de 2015

ENSAIO SOBRE A VISÃO - Parte I




“Fito-te - E o teu pensamento é uma cegueira minha”.

Fernando Pessoa



Cegueira. Ensaio sobre a cegueira! Quem enxerga muito bem jamais vai entender por que alguém se preocupa com uma banalidade tão à toa, a ponto de escrever um romance com semelhante tema. O presente texto – previno desde logo – nada tem a ver com o livro do Saramago. Exceto, talvez, pretender abrir os olhos de quem concorda com o que está dito acima. Ou seja, quem supõe que a privação do sentido da visão teria o mesmo significado da ausência dos outros quatro. Experimente não ouvir, não sentir odores nem o sabor dos alimentos, não tatear. É terrível, pois não? Mas agora feche os olhos – como se nunca mais fosse abrir –, e compare.


Chama-se catarata à perda da transparência de uma lente natural chamada cristalino. A maioria dos leigos pensa que a cura da catarata pela cirurgia é um procedimento simples. E até pouco tempo atrás, era mesmo, porque ou dava certo ou não dava! Bastava remover a lente natural e substituir por outra de vidro.


Era a “cesárea” dos oculistas. E ainda é! Qualquer Zé Mané é capaz de realizar este procedimento – hoje com muito mais segurança, porque o cristalino é dissolvido, e não mais cortado, como era antes. Mas havia um “porém”: muitos pacientes cegavam completamente depois da operação. Por quê? “Ah, ele não teve o repouso recomendado”. ”Ah, ele sofreu uma hemorragia imprevisível”. “Ah, o coitado teve azar”. Nada disso! É que pouco se sabia sobre a função e a patologia da córnea – aquela membrana fibrosa e transparente presa à esclera, constituindo a parte anterior do olho. Hoje em dia o “mistério” está praticamente esclarecido. Se o paciente impaciente possuir em suas córneas um mínimo de 1400 a 2500 células por milímetro quadrado, tudo bem. Desaparece a catarata e o doente volta a enxergar como se nunca a tivesse contraído. Do contrário...


Para mim, tudo começou - ou eu comecei a me preocupar - quando caí a todo pano num canteiro público de uma cidadezinha de Israel. Aquela mesma onde dizem que o Homem da cruz pregou o Sermão da Montanha. Tive vontade de dizer (e disse só pra mim mesmo), bem-aventurados os que enxergam, pois eles não tombarão. O meu diagnóstico já estava estabelecido. Tinha até sido submetido a exame de fundo do olho para constatar a integridade da retina. Quando voltei da viagem procurei um dos meus colegas oftalmologistas e disse: “Tá na hora de me operar”. Eu sabia lá se precisava contar células de córnea, coisa nenhuma! “Pois precisa, seu doutor. Tome a requisição e faça logo ontem!” Fui fazer como se fosse dosar a minha Glicose que nunca passou de 90 mg por 100 ml de sangue. Só que depois de olhar muito tempo dentro dos meus olhos através de aparelhos sofisticadíssimos, o doutor olhou sem aparelho algum, mas com um certo ar de preocupação: eu só tinha 500 células por milímetro quadrado de córnea. Em ambos os olhos! Consultei outro especialista que me expôs a situação. “Suas chances de cura são de 50%. Fui curto e grosso: “Supondo que você estivesse no meu lugar, o que faria?” “Vou ser sincero: só me deixaria operar quando não enxergasse mais nada!

Curioso! Cá no Brasil, em todas as outras profissões, existe uma certa hierarquia, como a das Forças Armadas, por exemplo, que começa pelo soldado, passa pelo cabo, o sargento, os oficiais e vai até os marechais... Assim, procuramos o melhor encanador, o melhor pedreiro, o melhor engenheiro, o eletricista exímio... Em medicina, não! Basta o sujeito ser médico: é tudo igual! E o pior, são todos nivelados pelo raso. Até eu – que me queixo de ser médico – fui nessa.


Já nem dirigia mais automóveis, quando meu cardiologista observou que eu não conseguia ler um determinado escrito que ele me apresentou.

“Por que não consegue ler?”

“Catarata”

“Por que não se opera?”

”Minha córnea não deixa”.


Depois ele me disse: “pensei que Córnea, no caso, era o apelido da tua mulher, porque você andava pulando a cerca”.










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