sexta-feira, 26 de março de 2010

Literatura & amnésia histórica


Márcia Denser

26/03/2010 - 06h00


“Hoje as artes e a literatura estão expostas a um perigo diferente: não se veem ameaçadas por uma doutrina ou um partido político, mas sim por um processo econômico sem rosto, sem alma e sem rumo”


Refletir sobre a situação atual da Literatura não deixa de ser uma operação essencialmente política, tantas as mediações envolvidas. De forma que, inspirada por umas leituras de Octávio Paz, tentei articular algumas características que marcam a Literatura no início do século 21:

- O deslocamento dos estudos humanísticos que deixaram de ser o centro dos sistemas educativos; o cientificismo que leva o discurso da física, da química ou biologia a domínios como a história e as ciências humanas. Por exemplo, deixar de ler a Odisséia como texto literário, para ler como relato histórico ou reportagem etnográfica, é como estudar mineralogia na Catedral de Chartres (que, entre outras coisas, é feita de pedras);

- Fora da universidade, a tradição poético/literária é corroída pela hipertrofia da indústria editorial que, aliada à publicidade, converteu em mercado financeiro o intercâmbio de idéias, valores, gostos e opiniões. O mundo literário sempre foi um comércio de bens materiais e espirituais, livros são objetos, mas principalmente objetos simbólicos, porque veículos de idéias e formas estéticas;

- A indústria editorial tende a dissolver a diversidade de públicos em massa. E isso não é deliberado, mas algo inscrito na própria natureza do sistema de produção. O mercado editorial é movido apenas por considerações econômicas – o valor supremo é o número de compradores. É bom ganhar dinheiro, bem como produzir para um grande público, mas nesse processo, infelizmente, a literatura morre e a sociedade se degrada se o propósito básico é a publicação de best-sellers, obras de entretenimento e de consumo popular. E a História da Literatura no Ocidente, sobretudo na Idade Moderna, tem sido a das minorias: escritores rebeldes, críticos da ordem estabelecida, poetas e romancistas inventores de novas formas, artistas herméticos e difíceis. A lógica do mercado não é da literatura;

- As considerações econômicas deslocam a literárias. A tendência à restrição e à uniformidade afeta o autor. Este enfrenta agora conselheiros de marketing e “editores” encarregados de alterar, corrigir e adaptar originais. Perda do diálogo autor e leitor: de onde se escreve e se lê? Para o mercado editorial, publicidade e televisão, todos os lugares, até os mais remotos, estão aqui. E onde fica aqui? Em nenhum lugar, que são todos os lugares. Aqui está no tempo, no agora mesmo. O eixo espacial se dissolve no eixo temporal;

- A ação do mercado tem efeito corrosivo no outro eixo da tradição poético-literária: o temporal. O império do agora desata os laços que nos unem ao passado. A imprensa, a televisão, a publicidade só oferecem relatos do aqui, agora e sempre. Vertiginosamente, o passado se afasta e desaparece. A perda do passado por sua vez provoca a perda do futuro. No Ocidente, desde o século 18, a orientação voltava-se para o futuro e para o progresso, mas com o declínio do Cristianismo e das utopias, o futuro sucumbe ao presente que herda seu brilho, sendo contudo um presente sem peso, flutuante, que não decola, que vai a todos os lugares mas não avança, nem chega a parte alguma, porque perdeu o sentido de orientação;

- A evaporação dos fins é a contrapartida do crescimento dos meios. No âmbito da tradição literária, a expansão do presente se manifesta pela tendência à comunicação instantânea. A duração, atributo da excelência, cede lugar ao consumo rápido;

- Esta mudança econômica coincide com outra de ordem moral e política nas democracias do Ocidente: a conversão dos cidadãos em consumidores. A ausência de movimentos poéticos na contemporaneidade reflete uma das mudanças que marcam nossa época: o fim da tradição de ruptura. É um dos signos que anunciam o fim da modernidade;

- Hoje as artes e a literatura estão expostas a um perigo diferente: não se veem ameaçadas por uma doutrina ou um partido político mas sim por um processo econômico sem rosto, sem alma e sem rumo. O mercado é circular, impessoal, imparcial e inflexível. Sua censura não é ideológica: não tem idéias. Sabe de preços, não de valores;

- A perda da memória histórica tem sido alarmante. A poesia canta, a literatura conta o que está acontecendo, a função de ambas é dar forma e se tornarem visíveis na vida cotidiana. Esta é sua missão principal, a mais antiga, permanente e universal. Ou vão deixar esse papel à cultura de mercado?


*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), A Ponte das Estrelas (1990), Toda Prosa (2002 - Esgotado), Diana Caçadora/Tango Fantasma (2003,Ateliê Editorial, reedição), Caim (Record, 2006), Toda Prosa II - Obra Escolhida (Record, 2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos, Alemanha, Suiça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português). Dois de seus contos - O Vampiro da Alameda Casabranca e Hell's Angel - foram incluídos nos 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que Hell's Angel está também entre os 100 Melhores Contos Eróticos Universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é pesquisadora de literatura, jornalista e curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O Outro Lado do Rio

Rubens da Cunha

Jamais atravesse o rio, se quiser viver, se quiser saber como será a vida daqui a dezvinte anos, jamais atravesse o rio. Tolie tem quinze anos. A avó morreu. Não tem mais ninguém que lhe prenda a este lado da margem. Pai e Mãe morreram antes, Tolie se lembra, o pai enervado com alguma coisa começou a discutir com a mãe. A mulher arremessou uma pedra e acertou a cabeça do pai que vazou até morrer. Ela não aguentou os olhares: da mãe, do filho, dos vizinhos, chamou todos na praça e condenou-se: com a faca de raspar mandioca, raspou-se inteira, dos pés a cabeça. Antes de esvaziar-se, gritou a todos, meu marido agora pode regar o chão em paz, que eu não manche a terra, pois não tive culpa, tive apenas impulso. Era uma espécie de maldição ser interrompido antes, todos tinham que se liquefazer aos cem anos. Os pais de Tolie não cumpriram a natureza, talvez por isso não tem amigos, além disso foi criado pela avó materna. É o neto da bruxa, o neto da velha doida. Tolie nunca entendeu a postura da avó: reclusa, visceral, feita de silêncios grandes e, às vezes, gritos contínuos. Sempre imprevisível, com exceção do discurso diário antes de todas as refeições: nunca atravesse o rio. Tolie perguntou diversas vezes o motivo, que tipo de contrário havia no outro lado do rio, porque não atravessá-lo, a outra margem nem era tão longe, em dias claros podia-se ver a mata, o morro, parecia tudo igual aqui deste lado. A avó esquivou-se o quanto pôde, insistia no ensinamento como que prevendo um futuro estranho nos olhos do neto. Ela discordava em tudo dos outros habitantes da aldeia, menos a certeza de que o rio não poderia ser atravessado. Os outros olhavam o rio e sabiam, apenas sabiam o seu lugar. Mas desde que começou a andar Tolie sempre quis saber do rio, ficou pior ainda com a morte dos pais.
A avó chamou o neto e antes de morrer sentenciou mais uma vez: jamais atravesse o rio, aqui você tem vida, futuro, pode ir para a cidade, pode ficar nas minhas terras, agora suas, faça as escolhas que quiser, siga o seu caminho, mas se mantenha sempre deste lado. Por quê, vó? Tolie recebeu como resposta a morte da avó. Esperou que ela se liquefizesse. Aos poucos, a pele, os órgãos, os ossos da mulher viraram água. Tolie viu sua vó escorrer pelo chão batido da casa, pela primeira vez rezou as preces ensinadas na igreja, retorna ao poço de onde viestes, sejas novamente a água límpida das nascentes, em nome do pai, do filho e do espírito.
Sentado na beira do rio, Tolie molha os pés nas águas escuras, está aqui desde a morte da avó, não conseguiu dormir, não conseguiu tomar uma decisão. Dois caminhos, Tolie, você tem dois caminhos. Ou segue o conselho da vó e parte daqui, em direção à cidade, ou a outro lugar em que não te conheçam, em que você não seja o neto da bruxa, ou você atravessa este rio, vai lá do outro lado e sabe por que a avó tinha tanto medo, tanta insistência no falar. Tolie está imerso nos pensamentos, sente um pouco de fome, mas prometeu só se alimentar quando souber o que vai fazer. Tem quinze anos, é um homem, o que tá esperando? Empurrão de alguém? Mas como vai atravessar o rio, a avó nunca deixou que ele nadasse, não precisa, você será água quando morrer, pra que nadar, além disso quanto menos se aproximar do rio menos tentações você corre. Tolie lembra dos cuidados excessivos da avó. Quando passavam perto do rio ele era pego pelo braço, segurado com firmeza, queria se soltar, levava uns tapas, ficava quieto derrotado, agora sozinho, quem vai prendê-lo? Quem vai segurar seu braço? Ninguém. Mesmo assim Tolie hesita. Resolve caminhar pela margem até a cidade.
Na cidade Tolie é olhado por todos os lados. Raros são os de sua aldeia que vêm à cidade, é sempre uma incursão na surpresa e no medo. Admiração também. Depois de horas perambulando, Tolie entra numa lanchonete. O atendente fala entredentes, o que deseja moço? água e um pedaço daquilo. O bolo seco vai rasgando sua garganta, a água acalma um pouco as ranhuras, o outro lado do rio ainda está na cabeça dele. Tolie olha para seu lado e vê um homem muito velho, quase sujo, barbado, que está orando diante de um copo com um líquido amarelo, e um pedaço de pão. O senhor sabe o que tem do outro lado do rio? arrisca a perguntar. O velho interrompe sua oração, olha fixamente para Tolie com certo ódio até, bem como todos os presentes naquela lanchonete, não há nada lá, nada, por isso ninguém pensa em atravessar, porque não há nada lá. Mas aqui é a cidade, aqui a vida é diferente, vocês me olham diferente, qual o motivo desse medo pelo o outro lado do rio? lá de onde eu venho, tudo bem, eles sempre acreditaram que o outro lado é perigoso, mas aqui? olha isso, olha essas ruas, o que pode ser mais perigoso do que isso? E Tolie fala, argumenta, como que possuído por algo que ele mesmo desconhece. Ele quer saber o que há do outro lado do rio, precisa. Por que não me contam, só isso, o que tem do outro lado do rio? Ninguém sabe! Tolie olha atrás de si e vê uma mulher diferente das outras, cheia de penduricalhos, com a cara por demais pintada, as pernas com varizes saltantes, o cabelo entre o marrom e o dourado. É isso, garoto, ninguém sabe o que tem do outro lado do rio, todo mundo, lá do cantão que você veio ou daqui dessa cidade enorme, todo mundo só acha que deve ficar aqui, desse lado, que o lado de lá não deve ser visto, e então ficam com isso, não sabem nadar, não constroem pontes, barcos, essas coisas. A cidade grande não mudou isso garoto. A cidade grande nunca vai mudar isso. E a mulher se aproxima de Tolie, que tal você largar mão dessa ideia ridícula de atravessar o rio e conhecer coisa melhor? e pega na mão dele e encaminha para baixo de sua saia, Tolie sai correndo, ouve ainda muitas risadas, quase é atropelado, aos poucos vai se afastando da cidade, tendo sempre o rio ao seu lado, tendo sempre o outro lado visível aos olhos, mas invisível ao conhecimento.
No último ano, Tolie aprendeu a nadar, secretamente, enquanto todos dormiam, ele entrava no rio e mexia-se até que foi conseguindo o equilíbrio necessário, até que conseguir ficar sobre as águas sem a necessidade que seu pé tocasse o chão, até que conseguiu nadar num lugar que não dava pé. Ontem, no seu aniversário, Tolie entrou no rio com o intuito de atravessá-lo, fosse o que fosse, iria até o outro lado. A princípio começou a nadar, normalmente mas a outra margem nunca ficava mais perto, a margem está lá, estou vendo, mas nunca chega, Tolie finalmente olha para trás, não vê seu lugar, atrás de si apenas rio, vou voltar, a avó estava certa. Tenta retornar, de um lado, do outro lado, nada acontece, está preso, não retorna mais ao lugar de origem. Tolie percebe que há somente movimento para frente, em direção ao lado proibido. Por que então não chega nunca, por que não fica mais perto como seria o normal? Tolie nada e chora como um homem de dezesseis anos. Cansado, mas parece que as águas do rio o embalam, parece que há um motor em seu corpo que o movimenta de forma automática. E Tolie nada, a margem que nunca chega. Atrás de si, apenas rio, já nem sabe se lá de onde veio há mais alguma coisa ainda.
Três dias e três noites. Finalmente a outra margem parece mais próxima. Tolie nada com força, agora tem o controle do corpo. Finalmente o pé encosta na lama. Tolie sai da água e olha ao redor. Percebe que tudo é exatamente igual à margem de onde veio. Quando percebe todos os conhecidos da aldeia estão olhando para ele. O que aconteceu Tolie? Por que você está todo molhado? você está aprendendo a nadar Tolie? por isso não conseguimos te encontrar nos últimos dias? Tolie assustado, não entende, sabe que não retornou, sabe que veio da outra margem, olha para trás, no outro lado do rio a mesma visão que tinha. Senta-se e chora. Aos poucos, as pessoas afastam-se, deve ficar louco igual a avó, também não era só a avó, e toda aquela família errada, não poderia dar outra coisa, Tolie ainda ouve outros comentários, tudo é igual, tudo se repete, ele passou dezesseis anos querendo vir para o outro lado do rio, para saber que tudo se repete, e se acaso voltar? o que vai acontecer? e o ele desse lado? onde está? o Tolie desse lado, pois se tudo se repete, há dois Tolies, é quando percebe que nunca vai encontrar seu igual, que nessa hora deve estar lá no outro lado, tendo os mesmos pensamentos, é quando Tolie percebe que está preso, que não adianta atravessar o rio, saber nadar, fugir de sua vida, pois vai sempre encontrar tudo igual, tudo feito à imagem e semelhança daquilo que já existe em sua vida. Ainda sentado, Tolie olha o rio, olha o outro lado do rio e decide que não adianta mais seguir, decide que vai liquefazer-se antes do tempo. Diferente da mãe que raspou-se em praça pública para poder vazar, Tolie entra no rio, segue até que água cubra seu umbigo e fixo, terno, decidido como um homem de dezesseis anos pode ser, Tolie chora até o fim.