sábado, 28 de maio de 2011

Escrever Contos

ESCREVER CONTOS

Muito pouco tem a ver

Com contar casos

Que ouvimos na rua,

Soubemos por amigos,

Jornais ou pela tevê.

Um conto é um corte

Na pele fina do hoje

E ele sangra tanto

Que para estancá-lo,

resta-nos o manto

de termos cotidianos.


Não escreva contos

Para fazer graça.

Só admita a piada

Quando for amarga.

A tristeza do tempo

que nunca para,

mesmo o amor maior,

nos espeta o peito

com sua pior farpa.

Conto repele risadas.

Isso é para a crônica

Que ajuda a digerir

As comidas pesadas.


Apenas escreva contos

em estados de fúria,

com um ódio santo

contra toda a turba.

Um conto necessário

é um ato de cura,

uma catarse em meio

à insanidade de tudo.

Escreva contos para

ensurdecer esse mundo

tomado pela usura.


Não escreva contos

como quem brinca

com palavras móveis,

incrustáveis nas frases.

Conto já nasce pronto.

Todo esforço vem antes,

ao se sofrer o corte

e sangrar até a morte.

Não é com palavras

que se faz um conto,

mas com sentimentos

imensos de desencontro,

entre o eu e o mundo,

mesmo quando o mundo

é quem nós somos.


Tente escrever um conto

que se prepare um pouco

para te ver como morto.

Estar vivo é algo falso

porque breve em demasia.

Todo conto é um canto,

um canto de despedida.


Não escreva contos

com palavras eruditas.

Conto é linguagem viva,

a mesma usada no bar,

na hora do namoro

no balcão da padaria.

Palavras do dia-a-dia

que súbito se concentram

para dizer de uma vez algo

que ninguém mais diria.


Escreva os seus contos

como quem se suicida,

sem deixar bilhetes

dando os tais motivos.

Um conto não se explica.

É morte imprevisível,

a vida como estigma,

a força de um mistério

que não se silencia.


Só escreva os seus contos

quando houver esses quandos.



Miguel Sanches Neto

quinta-feira, 5 de maio de 2011

"Louca uma ova": li e recomendo

por Patrícia Sotello

O autor:
Raymundo Silveira, médico-escritor. Onde termina um e começa o outro? Não há resposta. A leitura do escritor revela o médico erudito. Certamente, a consulta com o médico revelaria a erudição do escritor.

O livro:
no texto de Raymundo Silveira, realidade e ficção se fundem em crônicas-contos cuja linguagem clara e simples, mas não simplista, remete o leitor à conversa com um amigo íntimo. Seu texto soa como se estivesse sendo contado, gerando no leitor-espectador a vontade de “ouvir” mais outro “causo” – daí a leitura ininterrupta. Acrescenta-se a isso a força imagética gerada pelo trabalho com a linguagem. Quanto à temática, a medicina é recorrente, mas não a única. Raymundo nos fala de viagens – inclusive as da memória –, de história, de loucura. As singularidades da língua – da portuguesa principalmente – estão presentes tanto como tema, como na própria escolha lexical. Fala ainda de sobrevivência – à vida e à morte – com um quê de maravilhoso travestido de cena cotidiana observada pelo olhar de quem está de bem consigo mesmo.

O convite:
Ray (só para os íntimos) já se deitou na rede. Para a prosa começar, se achegue e abra a 1.ª página.