segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Síndrome Celulósica

por Ray Silveira

A maioria das pessoas medianamente inteligentes, com um mínimo de visão do futuro e que têm acompanhado a evolução da informática, reconhece que os anos dos livros de papel estão pesados, medidos e contados. Uma minoria, contudo, ainda continua tão apegada a eles que não admite sequer usar a razão para pelo menos discutir o assunto. É como a história de um casal que se ama demais, um deles se encontra na fase terminal de uma doença incurável e o outro se recusa a aceitar a realidade. Dezenas de mecanismos psicológicos de defesa são utilizados inconscientemente com este intuito porque os indivíduos propendem a se aferrar aos seus hábitos, às suas comodidades, às suas conveniências e até às suas paixões com o propósito de não admitir mudanças, como se o progresso estivesse se importando com as suas ilusões. Portanto, escritores novatos que sofrem da Síndrome Celulósica, corram logo para publicar os seus tratados de papel enquanto eles ainda não correm o risco de irem parar num museu, mal acabem de sair do prelo!
Com efeito, quem não adora um livro de papel? Um dos meus hábitos mais renitentes é fazer minhas vias-sacras pelas livrarias da cidade e este costume não é de agora. Comecei a idolatrar livros desde os meus dez ou doze anos de idade. Poucos prazeres se comparam a passar horas percorrendo as prateleiras, tirando, alisando, lendo e até cheirando livros novos. Mesmo os sebos, nunca deixei de freqüentar. Quando viajo, uma das minhas raras intolerâncias é quando a minha companheira se mete a exercitar o esporte predileto dos turistas brasileiros - fazer compras. O único atenuante que me faz suportar a espera é ficar numa livraria enquanto ela desce e sobe ruas, avenidas, elevadores, escadas rolantes, escadas de pedra, de madeira, de ferro, o diabo, à procura dos objetos dos seus desejos, enquanto eu permaneço dentro da bookstore ou - se estiver em Paris - caminhando pelas margens do Sena a buquinar sebos a cata de alfarrábios.
Minha biblioteca não é gigantesca; nem sei, ao certo, quantos títulos ou volumes possuo. Mas nas casas dos amigos que costumo freqüentar, ainda estou por ver alguma cujo acervo sequer se aproxime do meu. Aliás, a maioria nem biblioteca tem. Sou, portanto, muito mais do um bibliófilo: sou um adorador de livros. Todavia, sou também uma pessoa que não guarda ilusões. Há menos de dez anos, não conseguia permanecer mais do que dez minutos sem ler, sem estar a folhear um livro novo, sem consultar uma das muitas enciclopédias que possuo: A Britânica, em inglês, a Delta Larousse, em português e várias de medicina. À menor dúvida acerca de um fato histórico, do nome de um escritor, de um termo estranho, de uma pergunta banal das minhas filhas, corria para os meus livros de consulta. Ainda hoje é muito difícil sair de casa sem um livro. É a única maneira de conjugar o verbo esperar sem desesperar. Porém, as enciclopédias, coitadas, ficaram a ver navios, digo melhor, poeira, porque tenho tudo o que quero a duas tecladas do mouse.
Por outro lado, sempre fui uma pessoa pragmática. Quando ouço alguém discutir acaloradamente contra ou favor de inseminações artificiais, clonagens, fertilizações in vitro com sêmen e óvulos de gente que já morreu, minha vontade é de rir e é o que costumo mesmo fazer. Ninguém poderá deter o avanço da ciência nem a ferro, fogo, pau, ou chibata. Durante a Idade Média e o Renascimento cabeças rolaram, cientistas foram compelidas a abjurar as suas convicções, pessoas foram queimada em fogueiras com a finalidade de impedir o progresso. Mas nunca existiu um único caso em que isto tenha sido possível.
Há pouco mais de dez anos, assistindo ao Programa do Jô Soares (quando ainda prestava, porque sua pauta não era imposta pela Globo) vi uma entrevista com o cientista da computação Jean Paul Jacob - funcionário da IBM - onde ele comentou fatos e fez demonstrações estarrecedoras acerca de como seria a informática do futuro. Naquela época, isto é, há pouco menos de quinze anos, o melhor computador que existia para vender era o 386. Não havia Internet (pelo menos banalizada com está hoje). Nem sequer multimídias, tipo ICQs, MSNs, laptops, palmtops, pentiuns, videocams, códigos de barras e tantas outras engenhocas que hoje não conseguimos entender como vivíamos sem. Quando terminou a entrevista eu me virei para a minha mulher e disse esse cara está sendo pago para mentir. Quase tudo o que ele falou se materializou em pouco mais de cinco anos.
Por isso quando ouço falar que os livros de papel nunca vão se acabar, também costumo rir muito. Quando escuto alguém dizer que um romance como Guerra e Paz jamais lido através da Internet, me lembro de uma noite de luar na minha aldeia, em 1958, quando o assunto era a ida do homem à Lua. Éramos todos seminaristas e ouvíamos, sem duvidar de uma vírgula, do que dizia o nosso vigário: Ir à lua? O homem fará tudo o que quiser, menos deixar este planeta. Infelizmente ele não viveu até o dia 20 de Julho de 1969. Nós sim. E foi dele de quem me lembrei no exato momento em que ouvi aquelas palavras hoje já tão banais: "um pequeno passo e um grande salto". Gostaria tanto de estar vivo daqui a uns dez ou vinte anos somente para reler este texto que acabo de escrevinhar...

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