sábado, 14 de agosto de 2010

Memórias do Pré-Seminário

Dos anos já vividos, o de 1956 foi um dos marcos mais relevantes em termos da minha adaptação ao meio. É nele que costumo estabelecer a plenitude da minha puberdade; foi durante ele que sucederam acontecimentos decisivos para a minha adequação (ou inadequação) biológica, psicológica e social.
Em 1956 todas as coisas e pessoas me pareciam eternas. Às vezes tenho a impressão de que seria capaz de escrever um diário relatando as suas ocorrências, mas ao mesmo tempo reconheço que seria insensato confiar tanto assim na memória, pois esta não é tão precisa quanto parece e pode nos trair, principalmente quanto às suas minúcias e à sucessão exata dos fatos quanto ao tempo e ao espaço. No registro mental de alguns acontecimentos e de certas sensações e percepções – principalmente as de natureza visual e olfativa -, porém, posso confiar como se tivesse tudo documentado, se fosse possível documentar tais sensações. Entre as lembranças de pormenores corriqueiros, posso destacar: o primeiro dia da minha primeira chegada ao internato; o cheiro das roupas novas do meu leito; o odor emanado de uma indústria de extração e beneficiamento de óleos vegetais que se localizava nas proximidades da escola; o sabor de alguns alimentos, sobretudo daqueles que antes não costumavam fazer parte da minha dieta; a fisionomia exata de todos os meus colegas e professores (considero este detalhe tão extraordinário que chego a hesitar se deveria mesmo citá-lo como sendo de natureza banal) e as atividades do dia a dia, como despertar, praticar exercícios físicos, tomar banhos, assistir a missas e a aulas, rezar, estudar e ler.
Tenho na tela da memória a imagem do Zé Gilberto, uma espécie de bedel a quem chamavam prefeito de disciplina, postado à nossa frente. Estamos todos em formação à moda militar e ele sopra um apito enquanto executa a coreografia dos exercícios físicos a qual devíamos reproduzir. A cada silvo do apito correspondia um determinado movimento. Os mais freqüentes eram os de levantarmos e abaixarmos os braços. E os que exigiam mais esforço, os chamados abdominais, que consistiam em suspender e abaixar várias vezes o tronco, em posição horizontal, apoiado apenas nos pés e nas mãos. Escrevi este parágrafo apenas para ilustrar e demonstrar a capacidade de registro da minha memória. Através dele se pode deduzir como consigo recordar detalhadamente as demais atividades diárias que se passaram há exatos quarenta e oito anos, mas estão todas sendo reprisadas, neste preciso momento, na minha cabeça.
Entre os incidentes mais marcantes, lembro-me especialmente de um ataque que perpetramos contra um "pelotão" de biscoitos. Não sei por que (e sei, mas não há espaço nem azo para explicar aqui) aquele magote de frangotes vivia morto de fome, embora ingerisse três refeições diárias. Foi numa tarde de quarta-feira, quando tínhamos direito a um passeio nas imediações do colégio onde havia um aeroclube e ficávamos a assistir às exibições acrobáticas dos pilotos, ou íamos até o rio, onde tentávamos inutilmente pescar piabas com anzóis fabricados com alfinetes. Num destes dias, ao retornarmos, deparamos com uma quantidade substancial de biscoitos deixados provisoriamente no chão da portaria, devidamente, mas também precariamente, acondicionados em sacolas de papel. Plástico, naquele tempo, só a chamada matéria plástica - um derivado nem sei de quê, parece que da borracha - com que se fabricavam brinquedos, copos, pentes e fivelas. A escassa luminosidade crepuscular disse: "preparar"; a fome insaciável gritou: "apontar"; e o Laurianeto (sobrinho do diretor), comandou: "fogo!" Só vi se repetir cenas parecidas com aquela, dez anos mais tarde, e mesmo assim no cinema, quando assisti às investidas devastadoras dos pássaros no célebre filme de Alfred Hitchcock. Durou cerca de cinco minutos, mas foi suficiente para que não restasse pedra sobre pedra, digo melhor, biscoito sobre biscoito. Pena: prisão no salão de estudos durante um dia, privação de recreios durante uma semana e privação de passeios durante um mês.
Quando, ainda hoje, escuto as canções populares que fizeram sucesso naquele 1956, sinto-me quase como um dos personagens daquele filme, "De Volta Para o Futuro". Uma das mais famosas é o fado "Lisboa Antiga", porém a que me traz mais recordações é "Iracema", de Adoniran Barbosa – a história de uma mulher que morreu atropelada devido à falta de cuidados com que atravessava as ruas de São Paulo. O motivo desta inversão de evocação musical é uma circunstância afetiva. "Lisboa Antiga" eu só escutava durante o período duro dos estudos no internato, mas "Iracema" era uma espécie de hino da minha aldeia, pois parece que era o único disco (de cera, 78 rotações) que existia no Serviço de Altos Falantes de lá e eu o associava à imagem da criatura por quem primeiro me apaixonei na vida, sem que ela, provavelmente, jamais tenha sabido disto, diga-se. Chamava-se Joana D’Arc do Brasil, era filha do coletor estadual de impostos e minha tia dizia que era minha "prima" em undécimo grau. Não sei! O fato é que foi a primeira mulher (menina) por quem sofri por amor. E ela não sabia e, se viva estiver, não sabe até agora, nem nunca saberá, a menos que este escrevinhamento vá lhe cair nas mãos.
Outro acontecimento importante daquele ano foi o primeiro prêmio que conquistei. O meu colega mais inteligente e estudioso chamava-se (chama-se) José Gentil Mota. Nascido na cidade de Sucesso, no Noroeste do Ceará, este menino de origem humilde é hoje um bem sucedido engenheiro civil e foi meu colega e companheiro de internato durante três anos. Detinha uma inclinação especial para a matemática, disciplina que sempre foi o meu tormento. Como, além disto, era muito mais estudioso do que eu, nunca consegui ultrapassá-lo e fui sempre o seu vice. Nunca perdíamos, ele o primeiro e eu o segundo lugar. Em 1956 o Clube de Regatas Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, fez uma brilhante campanha no campeonato daquele Estado. Eu era vascaíno doente – continuo a ser, mas sadio -, não perdia um jogo do clube (evidentemente, através do rádio) e ainda hoje tenho de cor a sua escalação no típico esquema daquela época, o famoso dois, três, cinco. Duvidam? Carlos Aberto, Paulinho e Belini. Laerte, Orlando e Coronel. Sabará, Livinho, Vavá, Valter e Pinga. No final do ano ganhei o meu troféu em recompensa pelos segundos lugares obtidos durante todos os meses. Eram dois singelos objetos, mas se alguém os tivesse guardado e conservado, trocaria sem hesitação por vários outros aparentemente mais valiosos que ganhei durante esta vida a fora: uma carteira porta notas e um chaveiro com o logotipo... Que logotipo, quem sabia naquele tempo o que diabo era logotipo? Com o brasão do Vasco da Gama.
A maior frustração que tive em 1956 foi decorrente de um episódio risível que já travesti de ficção e descrevi no conto "A Calça de Tropical". Antes de possuí-la só usava calças curtas; então aquela calça de tropical que eu vestiria num domingo pela manhã seria um símbolo da minha transição de menino para rapaz, da minha auto-afirmação como macho, da "avant-première" das minhas penas coloridas de pavão. Não possuíamos armários, então, no sábado à noite, antes de irmos nos deitar, deixei-a dobrada sobre a mala a fim de facilitar encontrá-la no dia seguinte - aquele que seria o da minha estréia no picadeiro que eu considerava o mais concorrido no circo da vida. Não dormi durante a noite e fui o primeiro a me levantar pela manhã. Aos domingos não havia exercícios físicos. Nem sei como consegui tomar uma ducha, escovar os dentes e pentear os cabelos, tamanha era a excitação. E corri para apanhar e vestir a calça de tropical. Jamais o fiz. Um rato havia roído mais de dez centímetros quadrados da minha primeira calça comprida à altura do joelho direito.

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